quarta-feira, 16 de novembro de 2016

The Lamb Lies Down on Broadway – Um Enigma Musical

                    
   Em 1974, a seguir á tournée de promoção do álbum “Selling England by the Pound” (1973), os Genesis, grupo britânico de Rock Progressivo, juntaram-se para escrever e desenvolver o seu álbum seguinte que queriam que fosse um álbum conceptual, de acordo com a moda que se instalara na música desde o início da década de 70. Assim, reuniram-se em “Headley Grange”, uma quinta nos arredores de Londres e que, segundo outros grupos musicais que já a haviam utilizado anteriormente, era um local acolhedor para quem queria compor música e escrever letras. O que o grupo não sabia é que, apesar de vários contratempos, o álbum que dali iria resultar seria uma obra incontornável na história da música, uma obra de Rock Progressivo que o tempo se encarregaria de transformar numa obra-prima.
   Devido a problemas pessoais e também a estar envolvido em outros projectos fora do grupo (incluindo um possível filme com o realizador William Friedkin que nunca chegou a ver a luz do dia), Gabriel, que inicialmente se isolou do resto do grupo para poder escrever livremente as letras das canções, esteve ausente durante grande parte do processo de criação e dos ensaios, mas mesmo assim e apesar de grande parte da música ter sido escrita pelos restantes membros do grupo, ainda regressou a tempo de participar na gravação do álbum.
   
“The Lamb Lies Down on Broadway”, assim se chamou o  álbum, conta história de Rael, um jovem delinquente Porto-Riquenho que vive em Nova York. Numa manhã de um qualquer dia normal, Rael, acabado de sair da estação de metro em Manhattan, depara-se com um cordeiro deitado no passeio da Broadway e que tem um estranho e profundo efeito nele. Enquanto continua a sua caminhada, vê vir do céu uma nuvem negra que mais ninguém vê e que se transforma num écran de cinema, apanha tudo o que lhe surge á frente. Rael tenta fugir, mas em vão, é apanhado e arrastado para dentro do mesmo. Começa assim uma odisseia por um mundo estranho.
   O álbum abre com “The Lamb Lies Down on Broadway”, tema-título, ao som de um piano introdutório, com a voz de Peter Gabriel e o verso “And the Lamb Lies Down on Broadway”, a dar o mote para logo de seguida o resto do grupo juntar-se em harmonia, formando imagem sonora descritiva de Manhattan a despertar para um qualquer dia normal de trabalho e nela surge Rael, o nosso herói, a sair numa  estação de metro, deparar-se com aquela estranha visão do cordeiro deitado no passeio da Broadway e ser apanhado por uma estranha nuvem vinda do céu, que parece devorar tudo á sua volta e assume a forma de um écran cinematográfico. “Fly on a Windshield” usa sons etéreos e acústicos para dar a impressão do vento a arrastar tudo aquilo que encontra no caminho, incluindo um Rael que se apercebe que não consegue fugir daquele écran devorador que, no entanto, parece ser ignorado pela multidão. “The Broadway Melody of 1974” exibe- imagens do dia e também de algumas vedetas de Hollywood assim como da Broadway de ontem, que desfilam numa espécie de parada por um Rael inconsciente, mas que vai ouvindo no seu subconsciente ecos de vozes sem distinguir quem são. Com “Cuckoo Cocoon”, Rael acorda e interroga-se sobre o local onde se encontra (é isso que o verso “I wonder where the hell I am”, nos diz)  e esta interrogação é também transmitida ao ouvinte que está tão (ou, se calhar, mais) intrigado como ele. Apercebe-se, enquanto avança, que se encontra numa gruta que se vai modificando a cada sua movimentação. O poderoso “riff” de baixo que introduz “In the Cage”, seguido de um subtil som de teclas e de um toque suave de pratos na bateria acompanhados pela voz ansiosa de Gabriel, mostra-nos um Rael, a descrever aquilo que o rodeia e que, de repente, se vê aprisionado numa espécie de jaula formada por estalactites e estalagmites que se deslocam na sua direcção. Enquanto tenta escapar, Rael vê o seu irmão, John, do lado de fora, pede-lhe para o ajudar mas ele afasta-se e, ao mesmo tempo, a jaula desaparece e Rael começa a cair numa série de voltas e voltas que parecem não ter fim e, quando finalmente pára, encontra-se no chão duma fábrica.

   Com “The Grand Parade of Lifeless Packaging”, Rael é levado, por uma mulher, numa visita ás instalações fabris e onde vê pessoas no chão numa longa linha de produção a serem processadas e acondicionadas como se fossem embalagens e depois devolvidas á vida. Pouco depois, no mesmo local, encontra novamente o seu irmão John, imóvel e com um nº9 estampado na testa e, uma vez mais, não fala. Depara-se igualmente com membros do seu antigo gang e, temendo, pela sua vida, foge da fábrica.
Rael, depois de sair, vai deparar-se com a visão da Nova York da sua juventude. “Back in NYC” relembra a sua vida quando ainda era um jovem membro de um gang, o seu regresso de um assalto aos 17 anos de idade e quando a cidade era apenas para os mais fortes e aptos. É um longo “flashback” de memórias que ele vê desfilar á sua frente: “Hairless Heart”, um lindíssimo instrumental (das melhores peças que alguma vez o grupo compôs), mostra o sonho em que Rael vê o seu coração peludo ser removido e escanhoado com uma lâmina de barbear (esta minha interpretação pode ser entendida de maneira diferente...); “Counting Out Time” fala-nos da altura em que ele comprou e decorou um livro sobre encontros sexuais (“And I have studied every line, every page in the book”), do seu primeiro encontro com uma rapariga á qual tenta ministrar prazer mas falha redondamente por ter tudo numericamente organizado (“Touch and go with 1-6”, Bit of trouble in zone nº7”, “There’s heaven ahead in nº11!”).
   
“Carpet Crawlers” começa quando o desfile de memórias termina e Rael encontra-se novamente sozinho e tem á sua frente um longo corredor alcatifado, cheio de gente que tenta alcançar a porta que está ao fundo. Mais rápido que todos, ele alcança a porta, abre-a e vai-se encontrar numa longa escadaria que termina numa enorme câmara com 32 portas e assim chegamos a “The Chamber of 32 Doors” onde um Rael, cercado de diversa gente, incapaz de se concentrar e decidir qual a porta que deve escolher, pois apenas uma leva á saída, todas as outras conduzem novamente aquele local, encontra uma mulher que deseja conduzi-lo para fora da câmara.
“Lilywhite Lilith” apresenta-nos a mulher que ajuda Rael a sair pela porta certa para um outro aposento subterrâneo e grande onde o deixa sozinho. Medo e pânico é o que se pode deduzir do estranho e aterrorizante “The Waiting Room”, um tema instrumental que nos revela o que Rael sentiu naquele aposento onde foi deixado, no meio da escuridão e como única companhia um zumbido crescente e dois globos dourados iluminados que flutuam no ar encaminhando-se para ele. Rael destrói ambos os globos, mas provoca uma derrocada de rochas que o deixa preso e tudo parece indicar que acabou por selar o seu destino ao ver-se numa situação da qual não consegue sair.
   
 
“Anyway” começa com um piano insinuante (quase um eco distante do início de “The Lamb Lies Down on Broadway”) e Rael conta aquilo que está a sentir, sente a morte a aproximar-se (“Anyway, they say she comes on a pale horse”), como gostaria de morrer e, num tom quase sarcástico goza com a sua própria situação ( “How wonderful to be so profound, when everything you are is dying underground”). Mas, rapidamente, Rael percebe que a sua hora ainda não chegou, pois uma visita inesperada, deixa-o surpreso: a Morte vem visitá-lo e ajudá-lo a sair daquela situação, é o que acontece em “The Supernatural Anaesthetist”, outro tema instrumental, no qual, Rael, após ser liberto por aquele convidado indesejável, segue o seu caminho, metendo novamente por um corredor iluminado por candelabros e, desta vez, é o seu nariz que lhe dá a direcção a seguir pois uma fragância doce entra-lhe pelas narinas e, a cada passo, a intensidade do cheiro aumenta e Rael acaba por ir ter uma grande câmara onde uma piscina cuja água é em tons rosados e uma fina camada de neblina paira sobre ela.
   
Em “The Lamia”, a única canção romântica do álbum, acontece a descrição daquilo que Rael vê perante os seus olhos. Despe-se das roupas rasgadas e entra na piscina com o intuito de se refrescar pensando que está sozinho, mas rapidamente percebe que tal não é verdade quando se depara com três “Lamias”, uma espécie de criaturas parecidas com cobras, mas com rostos de belas mulheres. Rael, espantado com aquelas beldades, deixa-se envolver e acaba seduzido por elas. Mal as “Lamias” provam o seu sangue, morrem, a água da piscina muda de cor para um azul gelado. “Silent Sorrow in Empty Boats”, mostra-nos um Rael, consternado com as mortes que provocou e que, esfomeado, alimenta-se da carne das “Lamias” e, ao som de coros sintetizados, abandona aquele local prosseguindo a sua viagem através de outra passagem.
 
“The Colony of Slippermen” é um tema dividido em três segmentos que acompanham a transformação de Rael. O primeiro segmento, “The Arrival” mostra a sua chegada a uma colónia de “Slippermen”, uma espécie de seres humanos grotescamente deformados pela experiência que tiveram com as “Lamias” e que lhe dizem que também ele se transformou num deles (“Don’t be alarmed at what you see, You yourself are just the same as wha you see in me”), Rael não acredita no que lhe dizem (“Me, like you? Like that!”) , mas, ao ver o seu irmão John entre os “Slippermen” e depois dele lhe confirmar a realidade, ele aceita e fica também a saber que a única maneira de voltar a ser humano é ir visitar o Doutor Dyper e submeter-se a uma castração, o que acontece no segundo segmento do tema “A Visit to the Doktor” em que ambos se submetem á operação ( Don’t delay, dock the dick!”) e guardam os seus órgãos num recipiente que penduram á volta do pescoço (“he places the number into a tube, it’s a yellow plastic “shoobedoobe””) e continuam ambos pelo mesmo túnel á procura duma saída. Chegamos ao terceiro segmento “The Raven” onde os dois irmãos são atacados por um enorme corvo negro que rouba o recipiente de Rael, que o persegue e que John, com medo, se recusa a seguir (“Where the raven flies there’s jeopardy”) e vai-se embora deixando Rael sózinho.  Este persegue o corvo e só tem tempo de ver  que este, de repente, atira o recipiente por uma ravina abaixo que vai dar a um rio subterrâneo. 
   
Em “Ravine”, Rael , de pé, numa espécie de plataforma e com medo de saltar para  dentro da água agitada do rio que passa lá por baixo, decide descer a ravina até chegar lá. Enquanto faz a perigosa descida, Rael relembra os seus dias em Nova York e, num “flashback” momentâneo, regressa aos sons que lhe eram familiares e queridos, ao som de “The Light Dies Down on Broadway”, regressa ao ano passado,  aquele que era o seu  mundo e também á beleza dos temas  “The Lamia” e ”The Lamb Lies Down on Broadway” (se quisermos, o “Upper World” do ínicio do álbum) e imagina que o seu pesadelo (ou sonho?) está perto de chegar ao fim quando vê uma espécie de janela que lhe surge sobre a cabeça, que se abre e o convida a sair por ela (“Is this the way out from this endless scene? or just  an entrance to another dream?”).
   Mas de súbito, o seu “flashback” é interrompido por um grito que vem do fundo. Rael vê John dentro de água a tentar manter-se á tona.  Em “Riding the Scree”, Rael tem que fazer a escolha mais difícil da sua vida: Passa pela janela que entretanto se começa a fechar regressando assim á sua vida normal ou salva o seu irmão, apesar deste já o ter abandonado á sua sorte por duas vezes?  Rael escolhe salvar John e, enchendo-se de coragem, salta sem rodeios para dentro de água. Com “In the Rapids”, Rael  esforça-se, numa luta titânica contra a força da água, salvar o irmão e também a si próprio. Apelando para todas as sua forças, elel consegue, no último momento,  tirar John da água e arrastá-lo para terra. Quando Rael olha para o seu rosto para lhe captar sinais de vida, vê-se  a si próprio! (“Something’s changed, that’s not your face, it’s mine!”).  É com “It” que  se explica aquilo que realmente aconteceu: a sua consciência  (espírito?) vagueia entre os corpos e ele vê o cenário envolvente dissolver-se numa espécie de neblina enquanto ambos os corpos se dissolvem assim como o espírito de Rael se torna uno com aquilo que o rodeia. “It” providencia muitas respostas e abre inúmeras possibilidades que vão sendo apresentadas ao longo de toda a narrativa, mas, no fim, nenhuma é  definitiva. Peter Gabriel sumariza a história de um modo simplista: é com cada um de nós!.
Os Genesis no Palácio da Pena, em Sintra
     “The Lamb Lies Down on Broadway” foi editado a 18 de novembro de 1974. A 20 do mesmo mês, os “Genesis” davam início a uma tournée que os levaria á América do Norte e á Europa (Portugal, incluído, onde deram dois concertos nos dias 6 e 7 de março de 1975, no velhinho Dramático de Cascais), num total de 102 concertos onde tocaram o álbum integralmente. A tournée terminou a 22 de maio de 1975. Em agosto, Peter Gabriel, que já anunciara a sua vontade de sair, depois de terminada a tournée, abandona o grupo.
Recebido inicialmente com um misto de perplexidade e devoção, e até algum desinteresse por parte de alguma crítica que, depois de “Selling England by the Pound”, esperava outro algum do género e não um “Concept Album” que muitos consideraram incompreensível, “The Lamb Lies Down on Broadway”, conseguiu dividir também os fans da banda, mas nunca perdeu a importância que ganhou dentro da discografia do grupo nem o estatuto que ganhou na música. Década após década o álbum continuou a manter-se entre os dez melhores álbuns da história do rock e nos cinco primeiros lugares dos melhores do Rock Progressivo.
Já neste século, em dezembro de 2001,  foi considerado o quarto Melhor álbum da história da música e em 2012, os leitores da “Rolling Stone”, consideraram-no o quinto Melhor álbum de Rock Progressivo de todos os tempos.












Sem comentários:

Enviar um comentário

EMERSON, LAKE & PALMER II

            O trio, depois de um longo período de férias, sentindo-se revigorado, reuniu-se novamente em 1976, nos “Mountain Studios”, em Mo...