quinta-feira, 7 de maio de 2015

Viagem Pessoal com Martin Scorsese - Uma Dupla Lição de Cinema!


   
Uma das grandes características que define os realizadores que formaram  a chamada geração dos “Movie Brats”, que surgiu nas décadas de 60 e 70 é o conhecimento cinematográfico e a afeição com que o tratam. São uma segunda geração de artistas, os sucessores espirituais dos realizadores pioneiros, como D.W.Griffith, Cecil B.DeMille, Howard Hawks, King Vidor, Alfred Hitchcock, Charlie Chaplin, entre muitos outros. Muitos deles nasceram depois da linguagem e as convenções do cinema terem sido estabelecidos, o que não impediu que alguns deles se insurgissem e questionassem essas mesmas fundações. Mas,  para o poderem fazer de um modo efectivo, eles tinham que estar bem preparados , com bons conhecimentos da história do cinema, trabalhos importantes e personalidades marcantes. Estes conhecimentos pormenorizados são comuns entre os que realizadores que pertencem á segunda geração, os primeiros que beneficiaram de uma completa educação cinematográfica, mas, de todos esses realizadores, nenhum é mais versado na sétima arte do que Martin Scorsese.
   
Já se sabe que Martin Scorsese é um grande realizador, tardiamente reconhecido pelos seus pares, e é também um grande conhecedor do cinema. Grande parte dos seus anos de formação foram passados a consumir vorazmente tudo aquilo que estreava nos cinemas, o que contribuiu para o cinema do realizador seja preenchido com referências, homenagens e técnicas adquiridas com os seus homenageados. Quando foi convidado pelo Instituto de Cinema Britânico, para dar forma a este documentário, o realizador não hesitou em aceitar.
   Feito em 1994 aquando da celebração do centenário do cinema, este documentário constitui uma visão única e, nalguns aspectos, pessoal do realizador. No papel de apresentador e narrador, com a ajuda de entrevistas e clips de filmes, ele fala da importância e da influência de alguns dos nomes maiores da cinematografia americana e dos seus filmes na sua carreira de cineasta. Mostrando o papel do realizador como um contador de histórias, um ilusionista, um iconoclasta, ou até como uma espécie de contrabandista envolvido na eterna guerra do “puxa e empurra” com os estúdios. Através desta forma de trabalho, ele apresenta-nos o desenvolvimento da sétima arte desde o seu nascimento até ao final dos anos 60: o início com os filmes mudos, a transição para o sonoro e para a cor e finalmente o advento do “Cinemascope”, está um pouco de tudo, ao mesmo tempo, Scorsese foca-se nos géneros que mais o influenciaram: o Western, os filmes de gangsters e também o musical, gastando algum tempo a falar do desenvolvimento desses mesmos géneros e é nesse tempo que o realizador faz a ponte entre esses filmes e alguns dos seus contemporâneos de geração como George Lucas, Francis “Ford” Coppola, Brian DePalma, Clint Eastwood, com alguns realizadores mais velhos como Arthur Penn, Billy Wilder, Samuel Fuller ou John Cassavetes.
   
O seu género favorito, diz-nos a dado momento do documentário, é o filme de gangsters, género do qual vemos clips de 1915 do filme “The Regeneration” de Raoul Walsh; “Scarface – O Homem da Cicatriz” de Howard Hawks; “The Roaring Twenties – Heróis Esquecidos” de Raoul Walsh com que o realizador americano encerra o capítulo do filme dos gangsters  dizendo que por esta altura que “os gangsters se haviam tornado numa figura trágica, de certa maneira, eram uma antítese do próprio sonho Americano”. No final deste capítulo, é fácil perceber porque é que o realizador afirma que este é o seu génerp preferido. Ele próprio diz que a arte dos filmes de gangsters  está na génese dos seus filmes “Mean Streets – Os Cavaleiros do Asfalto” (1973) , “Goodfellas – Tudo Bons Rapazes” (1990) e “Casino – Casino” (1995).
   “A Viagem Pessoal” oferece ao espectador uma visão diferente, quiçá, algo original e transmite, através das palavras do seu apresentador, algumas lições para o futuro: através de diversos clips (alguns raros) , ele chama a atenção para o trabalho de alguns realizadores considerados obscuros (Como Abraham Polonsky que fez “A Force of Evil”, que Scorsese considera como um dos filmes  que mais o influenciou) ou “Leave her to Heaven” um filme sobre o ciúme ao ponto de se cometer um crime por causa dele, e recupera alguns trabalhos menos conhecidos de outros como Jacques Tourneur  e o seu filme de terror, série B, “I Walked with a Zombie” ou ainda  “Bigger than Life” que Nicholas Ray realizou e é um dos primeiros filmes americanos a abordar a temática da dependência
Porque “A Viagem Pessoal” é maioritariamente constituída por clips (ou excertos) de filmes antigos, pouco material original é incluído no documentário, a não ser as entrevistas, mas mesmo assim, Scorsese, não dispensou algumas das presenças habituais nos seus filmes: Thelma Schoonmaker, na supervisão da montagem; Saul Bass responsável pelos intertítulos manuais que separam cada capítulo e até Elmer Bernstein numa banda sonora tranquila e nostálgica baseada no piano.
   
Mas não é só a participação de alguns dos seus colaboradores que torna este documentário um trabalho Scorsesiano. A sua assinatura é evidente e fundamental no conceito da celebração do cinema americano dentro do próprio cinema. A sua apresentação é totalmente preenchida pela sua longa paixão pelos filmes e então ele, como narrador/apresentador, consegue penetrar no mais íntimo dos espectadores e falar-lhes da importância da herança cinematográfica que os estados unidos criaram. É um retrato extremamente íntimo o que realizador faz do trabalho daqueles que o precederam e o simples facto dele não fazer qualquer comentário ao seu trabalho ou ao dos seus contemporâneos no documentário, mostra o respeito e a dignidade com que o realizador encara o seu trabalho e posiciona-o como um potencialmente eminente historiador do cinema e o guardião desta herança para o mundo.
  Talvez por isto e também pelo sucesso obtido quando o documentário foi exibido, levou o realizador, anos depois, a repetir a experiência, mas desta vez no cinema italiano.
Foi em 1999 que o realizador se sentiu compelido a mergulhar nas suas raízes italianas devido ás recordações que os seus avós italianos que emigraram da Sicília para virem viver nos estados unidos, lhe transmitiram e foram também os filmes que via na sua casa, em “Little Italy” na cidade de nova York onde o realizador foi criado que lhe permitiram entender os valores e a cultura que sempre lhe tentaram transmitir.
   
“My Voyage to Italy” ou “Il Mio Viaggio in Italia” como se chamou originalmente começa com o realizador a dizer que se não tivesse visto os clássicos italianos, ele seria uma pessoa completamente diferente. Com um ar profundamente nostálgico, filmado num preto-e-branco intenso, o olhar directo na camera, ouvimos o realizador dizer “eu vi estes filmes…eles tiveram um grande impacto na minha pessoa…deveriam ver estes filmes” . O objectivo do realizador é inspirar-nos a ultrapassar um certo preconceito que exista no espectador contra algum cinema europeu, nomeadamente, o cinema italiano e deixar-se envolver na experiência, o que, mesmo ao longo das quatro horas que dura o documentário, é plenamente conseguido.
  “A Minha Viagem a Itália” segue o mesmo formato que “A minha Viagem Pessoal ao Cinema Americano”, intercalando comentários e memórias pessoais e outras recordações com excertos  longos ( alguns duram entre 10 a 15 minutos) de diversos clássicos italianos, editados com uma precisão tal que o espectador não  consegue descolar  o olhar das imagens do écran  e os ouvidos das palavras do realizador.
   
Focando a sua atenção no cinema italiano nas duas décadas seguintes ao final da  2ª guerra mundial, Scorsese explica convincentemente que o cinema é inseparável dos aspectos da vida, principalmente no que toca ao neo-realismo italiano que consegue quebrar as barreiras entre o documentário e a ficção, nos excertos dos filmes “Rome – Open City – Roma, Cidade Aberta” de Roberto Rossellini e em “Bicycle Thief – O Ladrão de Bicicletas” e “Umberto D. – Humberto D” ambos de Vittorio De Sica, o espectador sente-se como se a vida se vivesse no pior dos tempos. Conforme se vai mergulhando mais no documentário, este vai evoluindo para uma sensibilidade mais moderna com tendência para secularizar uma cultura crescente. Ao analisar o neo-realismo italiano, Scorsese faz grandes distinções entre os trabalhos  de Rossellini, que deixava a brutalidade dos factos falarem por si, e De Sica, que de ex-actor dos anos 30, se tornou realizador e um mestre no trabalho das emoções.
  O documentário divide-se em duas partes. A primeira consiste, como já foi dito, num estudo profundo do neo-realismo através das visões, de ruína, pobreza  e desespero  transmitidas por algumas das obras mais marcantes de Rossellini e De Sica  e o seu impacto no universo pós-guerra. A segunda parte, que não é tão intensa como a primeira, analisa os trabalhos de Luchino Visconti  e a  sensibilidade duma realidade quase operática que trouxe ao cinema italiano. Frederico Fellini, o mais famoso e internacional dos realizadores italianos, cuja filmografia emergiu bem do meio do neo-realismo, o seu “La Dolce Vita – A Bela Vida” é reconhecidamente, o ponto de viragem para a mudança. Scorsese também não se esquece de referir Michelangelo Antonioni como um dos grandes arautos do modernismo italiano.
   
No entender do realizador norte-americano, a grande viragem para o modernismo, acontece com os filmes “L’Avventura – A Aventura” e com “L’Eclipse – O Eclipse”, ambos de Antonioni, cujas personagens estão fechadas dentro do seu próprio isolamento em paisagens que perderam a capacidade de se alimentar espiritualmente. Inevitavelmente, Scorsese termina o documentário com Fellini e a sua obra-prima, “8 1/2 – Oito e Meio”, uma espécie de investigação fantasmagórica do frenesim em que se tornou o seu processo criativo após o sucesso de “La Dolce Vita”. O realizador considerou “8 ½ “ o filme que, pessoalmente, mais o influenciou.

   
Com  “A  Minha Viagem Pessoal  ao Cinema Americano” e com “A Minha Viagem a Itália”, Martin Scorsese  analisa, ao longo das mais de oito horas que duram ambos os documentários, ainda que superficialmente, uma  grande parte da história do cinema americano do século XX  e também as bases que estiveram na origem do nascimento do Neo-Realismo  na Itália e como esse movimento influenciou a maneira de filmar na europa e  também nos estados unidos.


Nota: as imagens que ilustram este texto foram retiradas da Internet

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