domingo, 17 de novembro de 2013

A Última Tentação de Cristo – Entre o Espírito e a Carne



   Lisboa, 30 de Junho de 1985, na Cinemateca Portuguesa  decorria um ciclo dedicado a Jean-Luc Godard, realizador Francês e um dos nomes responsáveis pela chamada “Nouvelle Vague” (Nova Vaga) do cinema Francês dos anos 60. Ia ser exibido o filme “Je Vous Salue Marie – Eu Vos Saúdo Maria” (1984), inédito no circuito comercial nacional, que já causara alguma polémica no Festival de Cannes quando um espectador, descontrolado, atirou uma tarte com creme de barbear à cara do realizador e fora proibido em vários países católicos e até mesmo o Papa João Paulo II dissera que “o filme fere profundamente os sentimentos dos crentes”. Alguém, respeitosamente, respondeu ao Santo Padre perguntando-lhe se ele não sabia que só entra no cinema quem quer.
   
Nesse dia, um grupo de cidadãos furiosos, defensores da moral e dos bons costumes, montou uma vigília á porta da Cinemateca para tentar impedir que o filme fosse exibido por ofender, no seu entender, a imagem de Maria. O filme transpõe a história de Maria, José e Jesus para a época contemporânea, o que automaticamente causou polémica, ainda mais com direito a alguns nus frontais da jovem Maria, levando a que, aquilo que para uns era poético, para outros fosse uma blasfémia total.
Apesar da grande confusão originada, com policia á mistura e tudo, o filme acabou mesmo por ser exibido, com algum atraso e toda esta polémica e publicidade gratuita levaram a que o filme fosse um dos grandes sucessos do realizador.
Alguns anos mais tarde, Lisboa voltaria a ser palco de uma polémica quase idêntica, mas desta vez o filme estreou no circuito comercial obteve um enorme sucesso comercial e pôs o seu realizador debaixo de fogo durante anos.
   
Em “A Última Tentação de Cristo”, assistimos á passagem de Jesus Cristo na terra, a sua vida enquanto homem e os desafios que enfrentou como qualquer ser humano faz e também á última tentação a que foi sujeito já na cruz.
Em 1956, depois de muitas indecisões, Martin Scorsese entra num seminário decidido a ser padre.  Quando chegou a altura de tomar os votos, o jovem Scorsese foi assaltado por sérias dúvidas que o levaram a abandonar esta ideia. Em bom tempo o fez, canalizando a sua atenção para o cinema, onde se formou em 1964.
   
Desde sempre que Scorsese queria fazer um filme sobre a  vida de Jesus Cristo, mas faltava-lhe a matéria em que se basear, porque ele não queria imitar as grandes obras do cinema mundial sobre o tema. Queria algo que, apelaria, anos mais tarde,  de “o meu filme mais pessoal”.
Em 1972, enquanto filmava “Boxcar Bertha – Uma Mulher da Rua”, Barbara Hershey, a actriz principal desse filme, deu-lhe a conhecer o livro “The Last Temptation of Christ”, escrito em 1951 e publicado em 1953,  por Nikos Kazantzakis, escritor e filósofo grego, no qual o autor dava a conhecer um Cristo diferente, cheio de dúvidas sobre o seu papel no universo, um carpinteiro odiado pelos judeus por colaborar com os romanos ao fazer-lhes cruzes que são depois usadas para crucificar os seus pares. A actriz pediu ao realizador que transformasse o livro em filme e que ela gostaria de interpretar o papel de Maria Madalena. Scorsese adorou o livro. Kazantzakis expunha ali as mesmas dúvidas que Martin Scorsese tivera anos antes.  Tratou logo de adquirir os direitos de adaptação e, em finais da década de 70,  pediu a Paul Schrader, que já escrevera o excelente “Taxi Driver” (Martin Scorsese, 1976), que transformasse o livro num argumento. Scorsese tinha encontrado o seu Cristo, mas ainda iria ter de esperar algum tempo até o levar até ao grande écran.
   
Inicialmente, este seria  o projecto de Scorsese a seguir a “The King of Comedy – O rei da Comédia” (1983). Com um orçamento de cerca de 14.000.000 de dólares e filmagens em Israel, para, nas palavras do próprio realizador ”tornar mais realista o filme”, com Aidan Quinn como Jesus, Ray Davies como Judas, Barbara Hershey como Maria Madalena e Sting como Poncio Pilatos, as filmagens eram para ter início em outubro de 1983. Porém, problemas de logística a nível das localizações (Israel não apresentava a segurança necessária a toda a equipa) e também devido a alguns protestos de vários grupos religiosos, a produção começou a atrasar e acabou por ser cancelada em dezembro desse ano. Em 1986, a Universal mostrou-se interessada no projecto. Scorsese ofereceu-se para realizar o filme em 58 dias por 7.000.000 de dólares e a produção recebeu luz verde para avançar. Mas desta vez, os problemas puseram-se ao nível artístico: com a excepção de Barbara Hershey, todos os outros desistiram dos seus papéis. 
   
O realizador não desistiu e escolheu outros actores ( Robert DeNiro, um “habitué” nos filmes do realizador, foi convidado para o papel de Jesus, mas devido a outro compromisso, teve de recusar). A produção teve início em outubro de 1987, com as filmagens a decorrer em Marrocos (cenário idêntico a Israel e também mais barato) e, apesar da dificuldades postas pelo prazo apertado e da necessidade de muito improviso a ter que ser trabalhado no próprio set, a rodagem terminou dentro do prazo estipulado, em dezembro de 1987. Agora era tempo da sala de montagem dar forma e vida á visão do realizador.
   O filme abre com um “travelling” vertiginoso (quase como se o Espírito de Deus descesse á terra) que vai terminar num plano vertical sobre um homem deitado na terra (Jesus, o escolhido por Deus para cumprir a sua missão, as vozes que estão na sua cabeça e que ele  não compreende o que pretendem de si)

   Aquilo que vemos no écran é um Cristo confundido e pouco esclarecido sobre o propósito da sua missão e o que realmente querem dele, para isso, vai magoar  Deus, até lhe ser explicado o que pretendem dele e fá-lo ao fabricar cruzes para os romanos; Judas, ao contrário do que falam os Evangelhos, era o mais devoto dos Apóstolos, cuja traição a Cristo foi para o salvar da própria humanidade e quem, em última instância, salva Cristo de sucumbir à Tentação e morrer condignamente em vez de o fazer como um ser humano comum; Maria Madalena, a prostituta que ama Jesus, quere-lo só para si e não aceita que ele lhe seja roubado, para o atingir, ela prostitui-se com todos os homens que encontra, acabando eventualmente por ser salva por um Jesus pré-messiânico, na dramática cena do apedrejamento onde Jesus tenta, em vão, explicar á multidão o que Deus pretende.

      
Um elenco de luxo, onde se incluem os nomes de Willem Dafoe, naquele que, se exceptuarmos o papel de Sargento Elias em “Platoon – Os Bravos do Pelotão” (Oliver Stone, 1986), será talvez a melhor sua interpretação;  Harvey Keitel é Judas, o Primeiro Apóstolo (novamente ao contrário da história conhecida), encarregado de matar Jesus pela sua traição, acaba convencido pelo próprio a ajudá-lo a perceber a sua missão. O actor, outro “habitué das produções de Scorsese, apesar do seu sotaque nova-irquino, tem uma prestação ao nível de tantas outras que nos habituou em inúmeras produções;   Barbara Hershey no papel de Maria Madalena, ama e é amada por Jesus, que a troca por desígnios mais altos, a bonita actriz tem aqui o seu melhor desempenho;  Harry Dean Stanton, é o Apóstolo Paulo que, na sua vida alternativa, Jesus encontra a pregar sobre o messias que morreu na cruz; o realizador Irvin Kershner  (no papel de Zebedeu, o responsável pelo apedrejamento a Madalena) e o cantor David Bowie, no papel de Pôncio Pilatos, entre outros, que contrbui para tornar este filme um verdadeiro entretenimento.
   
Onde o filme se torna verdadeiramente magistral é na cena do Gólgota onde, graças à realização excepcional de Scorsese, vemos Cristo crucificado a ser tentado por Satanás para escolher uma vida normal e surgem então as tão polémicas imagens que puseram o mundo cristão em polvorosa: Jesus e Maria Madalena, casados, a fazer amor em sua casa. São cerca de cinco minutos em que somos postos perante uma espécie de vida alternativa de Cristo. Muito pouco tempo para criar tão grande polémica, uma vez que logo de seguida, a tentação termina e a história segue o seu curso como a conhecemos.
   Apesar da polémica que acompanhou o filme, este conseguiu um sucesso moderado em países católicos e não católicos, críticas divididas, assim como a opinião pública. Não raro foi assistir-se a grupos de pessoas junto das salas de cinema a tentar convencer potenciais espectadores a não verem o filme. Portugal, como habitualmente, não foi excepção nesta situação. No meio de tanta polémica, o filme acabou por receber uma nomeação para os Oscares da Academia, precisamente para o seu realizador.
   
Desde o inicio do filme  até á crucificação no Gólgota, assistimos a um olhar diferente, brilhante em alguns aspectos, e bonito da vida de Cristo a partir duma abordagem não tradicional e raramente vista, tornando a "A Última Tentação de Cristo" uma pequena obra-prima no universo cinematográfico, mas uma grande obra-prima no universo do realizador Martin Scorsese.

 Nota: As imagens e vídeo que ilustram o texto foram retiradas da Internet




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